Loteamento – aspectos fiscais, contratuais e societários (PARTE I – Contrato de Parceria)
Raphael Augusto Almeida Prado
No contexto de parcelamento de solo urbano, notadamente em sua modalidade de loteamento, o empreendedor costuma prospectar glebas que reúnam as características e requisitos legais apropriados evitando, contudo, imobilizar capital na aquisição imobiliária.
Trata-se de uma atividade empresarial cada vez mais abordada sob o foco prisma sociológico, urbanístico, ambiental, jurídico, econômico e político, como bem descreve Luciano Mollica[1].
Para tanto, costuma-se celebrar com o proprietário da gleba o chamado contrato de parceria, pelo qual, grosso modo, o loteador obriga-se a obter a aprovação, a executar as obras do loteamento e a comercializar os lotes, mediante a futura partilha do resultado econômico-financeiro do empreendimento ao proprietário ou, ainda, pela entrega de porcentual de lotes acabados.
O contrato de parceria é um instrumento atípico pelo qual as partes, empreendedor e proprietário, ajustam uma série de responsabilidades, direitos e obrigações que deverão ser cumpridas para a consecução do objetivo comum. É a forma mais comum e difundida na associação entre proprietário e empreendedor.
Da lição de Vicente C. Amadei[2], extrai-se que
Este tipo de contrato é o mais utilizado para realização de um loteamento e é o mais conveniente tanto para o empreendedor como para o proprietário de uma gleba. A compra de uma gleba por um empreendedor torna o negócio praticamente inviável, do ponto de vista econômico financeiros, dado o seu alto custo. No caso de parceria esse custo é zero para o empreendedor e os custos financeiros para implementação do loteamento também é zero para o proprietário. A parceria viabiliza o negócio para os dois interessados.
Diante da larga utilização dessa modalidade associativa no mercado imobiliário brasileiro, surgiu a necessidade de sua delimitação, para fins fiscais, o que resultou no Parecer Normativo Coordenador do Sistema Tributário – CST 15/1984, pelo qual a pessoa jurídica executora do empreendimento de loteamento está sujeita ao tratamento tributário de que tratam os arts. 285 a 288 do Regulamento do Imposto de Renda/80. (atuais arts. 410 a 414 do RIR/99).
Esclarece ainda que a contabilidade de ambas as partes registrará tão-somente o que disser respeito a cada uma. Nos registros do titular do loteamento continuará a constar somente o valor da terra nua. Já os registros da pessoa jurídica executora do empreendimento de loteamento consignarão os demais valores aplicados no custo do loteamento.
Referido Parecer conferiu certo conforto às partes ao longo das últimas décadas, porquanto cada qual declara a tributa o resultado do empreendimento de acordo com o seu respectivo regime tributário.
Essa aparente clareza no regime de tributação dos contratos de parceria para fins de loteamento sofreu abalo em 2011, quando da 1ª Turma Especial do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais emanou a seguinte decisão:
LUCRO PRESUMIDO. LOTEAMENTO/INCORPORAÇÃO TERRENO ALHEIO. PARCERIA. TRIBUTAÇÃO DAS RECEITAS. O contrato particular de parceria firmado entre pessoas jurídicas com o fim de lotear terreno e promover benfeitorias nos lotes e respectiva repartição de receitas proporcionais a custos não pode ser oposto à Fazenda Nacional, se divergente das disposições legais vigentes, só tendo eficácia inter partes nos termos do art. 126 do CTN. A empresa que opta pelo regime de apuração do lucro na forma presumida deve oferecer toda a receita obtida com a venda dos lotes de sua propriedade à tributação na forma do disposto no artigo. (grifei)
Em 2015, fazendo coro ao Parecer que fomentou a utilização do contrato de parceria em razão de sua eficiência tributária, a Receita Federal do Brasil, pela Solução de Consulta COSIT N. 39/15, registrou o seguinte:
ATIVIDADE IMOBILIÁRIA. LOTEAMENTO EM TERRENO DE TERCEIROS. PARCERIA – REPARTIÇÃO DAS RECEITAS. TRIBUTAÇÃO – SUJEITO PASSIVO. Empresa que recebe as prestações de imóveis vendidos em parceria com outras empresas ou pessoas físicas, e cuja receita operacional consiste na participação proporcional no preço de venda das unidades imobiliárias, segundo um percentual convencionado entre as partes, deve tributar a parcela que lhe cabe contratualmente. Para efeito da tributação, cada contratante é sujeito passivo da obrigação tributária e deve registrar na sua contabilidade e tributar as receitas que lhe couberem contratualmente. DISPOSITIVOS LEGAIS: Decreto nº 3.000, de 26 de março de 1999 – Regulamento do Imposto de Renda – RIR/99 -, arts. 227, 279 e 410 a 414. Parecer Normativo CST nº 15/1984. (grifei)
Embora a questão tributária tenha retornado a uma aparente normalidade, certo é que o contrato de parceria para fins de implantação de loteamento consiste numa forma de associação de recursos e de qualificações gerenciais para a consecução de um objetivo comum que é o loteamento de uma área de terras para posterior alienação unidades imobiliárias, com repartição proporcional do resultado, conforme a própria redação do Parecer CST 15/1984.
Vale frisar que os proprietários de glebas geralmente preferem esse arranjo atípico consubstanciado no contrato de parceria, justamente porque, além da eficiência fiscal, tal modalidade permite que continuem com o domínio do imóvel, exercendo um certo controle sobre a atividade do loteador.
Contudo, destacamos que o proprietário da gleba deve ter algumas cautelas com essa modalidade de arranjo contratual, dado que existe a possibilidade de ser responsabilizado, por exemplo, em demandas de natureza consumerista, trabalhista, ambiental e urbanística, não só na qualidade de dono, mas também caso o contrato de parceria seja entendido como sociedade em comum.
Com efeito, o contrato de parceria consiste na reunião de duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, para a consecução de um empreendimento comum, no qual elas se obrigam a contribuir com recursos (terra nua, mão de obra, insumos, atividades administrativas) para futura partilha do lucro.
Tal figura aproxima-se muito do conceito de sociedade trazido pelo art. 981 do Código Civil:
Art. 981. CC: Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.
Veja-se que no contrato de parceria ocorre exatamente a hipótese do sobredito artigo, na medida em que o proprietário permite que o empreendedor edifique as ruas e demais acessões sobre o seu imóvel para futura alienação de lotes, com divisão dos lucros da empreitada, sendo que cada qual concorre para o êxito do negócio mediante uma contribuição específica, seja entregando a posse direta para construção do projeto aprovado, seja com recursos e insumos para a execução das obras, comercialização e gestão da carteira de recebíveis.
Ocorre que, sendo a parceria enquadrada no conceito de sociedade, enquanto não registrados os atos constitutivos, reger-se-á pelas regras da sociedade em comum, sendo uma delas (e a mais gravosa) aquela do art. 990:
Art. 990, CC: Todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, excluído do benefício de ordem, previsto no art. 1.024, aquele que contratou pela sociedade.
Logo, a partir dessa interpretação, seria possível responsabilizar solidária e ilimitadamente o proprietário parceiro do empreendimento, o qual, muitas vezes, assume inconscientemente os riscos do negócio, podendo, a depender da idoneidade do loteador, colocar todo o seu patrimônio pessoal em jogo.
Além disso, como o proprietário permanece como dono do imóvel ao longo da execução do projeto até posterior alienação aos adquirentes finais, pode responder também a esse título perante os consumidores, credores trabalhistas, obrigações previdenciárias, sendo comum que esse tipo de empreendimento dê origem a ações civis públicas questionando a legalidade das licenças, a infração a normas urbanísticas e ambientais, restando ao proprietário voltar-se contra o empreendedor pela via regressiva.
Importante ressaltar que, em regra, os contratos de parceria não são oponíveis contra terceiros, recomendando-se o seu imediato registro perante o Cartório de Títulos e Documentos do local do empreendimento e, posteriormente, averbado perante o Registro de Imóveis, a fim de reforçar eventual tese de irresponsabilidade do proprietário em demandas propostas por adquirentes ou até mesmo para reforçar e dar publicidade ao conteúdo normativo e a distribuição de direitos e obrigações estabelecida entre as partes integrantes do contrato perante o Ministério Público, Prefeitura e demais órgãos públicos.
Com efeito, a alínea d, do art. 2º-A, da Lei 6.766/79, introduzido pela Lei 14.118/21, ao conceituar o empreendedor, estabeleceu que pode figurar em tal condição a pessoa física ou jurídica contratada pelo proprietário do imóvel a ser parcelado ou pelo poder público para executar o parcelamento ou a regularização fundiária, em forma de parceria, sob regime de obrigação solidária, devendo o contrato ser averbado na matrícula do imóvel no competente registro de imóveis.
Não é só para o proprietário que existem riscos. O empreendedor também aporta quantias vultosas no empreendimento, na maioria das vezes superior ao próprio valor da terra nua.
Considerando a necessidade de registro especial do art. 18 da Lei 6.766/79, que determina a apresentação de diversas certidões, é possível que eventuais passivos do proprietário atinjam a gleba a, por conseguinte, afetem adversamente a execução do negócio, sendo necessário estabelecer mecanismos contratuais que mitiguem esse risco, como a obrigação do proprietário em manter o imóvel livre e desembaraçado de quaisquer ônus ou gravames, comunicar imediatamente eventuais restrições ou contingentes que tenham potencial de prejudicar o empreendimento, possibilidade de quitação de dívidas com sub-rogação no crédito e eventual abatimento do repasse, dentre outras.
Conclui-se, então, que o contrato de parceria, embora amplamente utilizado pelos players do setor de parcelamento de solo urbano, pode conter riscos embutidos que deverão ser democraticamente discutidos e adequadamente endereçados em sua formação, evitando-se litígios desnecessários e garantindo às partes condições mínimas de conforto e segurança jurídica para a consecução do empreendimento.
[1] MOLLICA, Luciano. Aspectos Polêmicos do Contrato de Parceria para Desenvolvimento de Loteamentos. Operações Imobiliárias. Estruturação e Tributação, coordenado por Renato Vilela Faria e Leonardo Freitas de Moraes e Castro, Ed. Saraiva, 2016, p. 256.
[2] AMADEI, Vicente Celeste e AMADEI, Vicente de abreu. Como Lotear Uma Gleba – o parcelamento do solo urbano em seus aspectos essenciais (loteamento e desmembramento) – 4ª edição. Campinas/SP, Millenium Editora, 2014, p. 443.