Loteamentos – aspectos fiscais, contratuais e societários (PARTE II – SPE)
Raphael Augusto Almeida Prado
Configura-se como uma alternativa viável ao contrato de parceria a constituição de uma sociedade de propósito específico (SPE) para a execução do empreendimento, pela qual o proprietário integraliza a gleba no capital social da sociedade empresária, passando a ser seu sócio.
Na qualidade de proprietária da gleba, a SPE passa a ser a loteadora, reduzindo a possibilidade de riscos para o proprietário que, deixando tal condição após a integralização do capital social, passa a ostentar a qualidade de sócio do empreendimento.
O objetivo da constituição de uma SPE é, justamente, o de segregação patrimonial por meio da adoção de uma figura societária típica, dotada de autonomia patrimonial visando separar o patrimônio destinado ao empreendimento do patrimônio pessoal dos seus sócios, embora seja verdade que o art. 47 da Lei 6.766/79 reze que se o loteador integrar grupo econômico ou financeiro, qualquer pessoa física ou jurídica desse grupo, beneficiária de qualquer forma do loteamento ou desmembramento irregular, será solidariamente responsável pelos prejuízos por ele causados aos compradores de lotes e ao Poder Público. (grifei)
De todo modo, acreditamos que a autonomia patrimonial deve ser defendida.
Pela leitura do dispositivo mencionado, entende-se que a solidariedade imposta pelo legislador aos envolvidos no empreendimento é demasiadamente ampla.
A bem da verdade, a interpretação do art. 47 deve ser realizada de forma comedida pelo operador do direito, em harmonia com outros dispositivos legais de igual relevância, sob pena de inibir-se, por insegurança jurídica, a realização de importante atividade econômica.
O art. 50 do Código Civil estabelece regras para a desconsideração da personalidade jurídica e consequente atingimento dos bens dos sócios ou administradores.
Para que o manto da personalidade jurídica seja desconsiderado em determinadas obrigações, é preciso que seja comprovado o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.
O desvio de finalidade caracteriza-se pela utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
A confusão patrimonial, por seu turno, é consubstanciada pela ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
Ademais, em seu §4º, consta que a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
Com efeito, a Lei 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica) trouxe importante marco interpretativo na questão da desconsideração da personalidade jurídica, evitando que a penetração no patrimônio dos sócios se dê a qualquer título, como usualmente acontecia em questões envolvendo matéria fiscal e trabalhista.
O Código de Defesa do Consumidor, por seu turno, estabelece, no art. 28, que o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Diz, em seu § 5º, que também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
Em matéria processual, os artigos 133 e 134 do Código de Processo Civil estipulam que a desconsideração poderá ser requerida pela via incidental ou na própria petição inicial, hipótese esta que depende, naturalmente, de provas prévias e robustas de enquadramento das situações previstas nos artigos 50, CC ou 28, CDC, sendo que a meu ver, sob pena de se inutilizar a ficção societária (exceto para fins fiscais, em que a estruturação societária permitiria maior eficiência fiscal), a solidariedade somente deve ser aplicada (i) se restarem configuradas tais circunstâncias ensejadoras da desconsideração da personalidade jurídica; ou (ii) nos casos de loteamentos irregulares e clandestinos[1], cuja comprovação depende basicamente de provas documentais.
Veja-se que a decisão abaixo considerou a existência de elementos importantes para justificar a manutenção dos sócios no polo passivo da demanda.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. LOTEAMENTO IRREGULAR. DESPACHO SANEADOR.EXCLUSÃO DOS SÓCIOS DA PESSOA JURÍDICA DO POLO PASSIVO. IMPOSSIBILIDADE.RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. ART. 47 DA LEI 6.766/1979. ALIENAÇÃO DO ATIVO IMOBILIZADO DA EMPRESA. ESVAZIAMENTO DO CAPITAL. ACRÉSCIMO AO PATRIMÔNIO PESSOAL DOS SÓCIOS. Os sócios da pessoa jurídica loteadora são partes legítimas para figurar no polo passivo da ação de obrigação de fazer que visa apurar a irregularidade na implementação do loteamento, em especial quando há aparente esvaziamento do capital imobilizado da pessoa jurídica em proveito pessoal de seus sócios. RECURSO PROVIDO. (TJPR – 5ª C.Cível – AI – 1708897-0 – Fazenda Rio Grande – Rel.: Desembargador Nilson Mizuta – Unânime – J. 31.10.2017) (TJ-PR – AI: 17088970 PR 1708897-0 (Acórdão), Relator: Desembargador Nilson Mizuta, Data de Julgamento: 31/10/2017, 5ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 2150 14/11/2017)
A interpretação deve estar pautada no alinhamento entre a solidariedade obrigacional entre o empreendedor e o proprietário da gleba e o princípio da autonomia patrimonial, cujo manto somente pode ser desconsiderado em determinadas hipóteses.
Acredita-se que apenas desse modo estar-se-á equilibrando a pluralidade de interesses envolvida em tão complexa atividade que, novamente destacamos, possui não só um caráter econômico-financeiro, mas também social, urbanístico e ambiental, prestigiando a segregação patrimonial que emana da sociedade regularmente constituída enquanto ela e seus sócios não incidam nas hipóteses acima destacadas, prevalecendo a redação do art. 49-A do Código Civil, introduzido no ordenamento pela Lei 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), que assim prescreve:
Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.
Logo, como forma de alocação e segregação de riscos, a SPE ainda se mostra como instrumento válido tanto para o proprietário da gleba quanto para o empreendedor, cada qual respondendo restritamente ao valor de suas quotas, na forma do art. 1.052 do Código Civil, salvo nas hipóteses acima tratadas e, ainda, circunstâncias que envolvam matéria trabalhista ou tributária, cuja imprevisibilidade ainda é fator de risco para toda e qualquer atividade empresarial.
Obviamente, a SPE não servirá de blindagem patrimonial às partes, mas representará grau de segurança maior do quanto se verifica nos contratos de parceria, onde sequer há espaço para discussão sobre a autonomia patrimonial.
Recomenda-se, nesses casos, a realização de uma due diligence preliminar de background check sobre a idoneidade dos sócios que integrarão a SPE.
A SPE pode assumir tanto o tipo societário próprio das sociedades de responsabilidade limitada quanto o das sociedades por ações, sendo, no primeiro caso, regida pelo Código Civil e, no segundo, pela Lei 6.404/76 (Lei das Sociedades por Ações)[2], admitindo-se a regência supletiva da LTDA pela LSA, conforme a Instrução Normativa n. 81/20, emitida pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI).
A regência supletiva constará expressamente do contrato social da LTDA. ou, ainda, será presumida caso e sociedade adote figuras típicas das sociedades anônimas, desde que compatíveis com tipo societário adotado, como quotas em tesouraria, quotas preferenciais, conselho de administração e conselho fiscal.
Independentemente da escolha do tipo societário, o acordo de cotistas ou de acionistas deverá prever os mecanismos de distribuição de riscos e dos resultados do loteamento, alocar as responsabilidades, direitos e deveres dos sócios, determinar as formas de dissolução parcial ou total da sociedade e a forma da exclusão de sócios e, especificamente quanto aos loteamentos, conter as obrigações sobre aprovação, execução e comercialização dos lotes, transportando o que constaria do contrato de parceria para o acordo social.
As regras assim definidas, se obedecidas as diretrizes do art. 118 da LSA, serão oponíveis a terceiros e poderão ser objeto de execução específica.
Questão importante a ser destacada é sobre a formação do capital social da SPE.
Considerando que muitas vezes os aportes do sócio empreendedor superam o valor da terra nua integralizada pelo sócio ex-proprietário pessoa física, não raro este sofre diluição no capital social, até mesmo porque a integralização do capital social em bens e direitos feita pelo valor constante da declaração do imposto de renda da pessoa física (valor histórico) é mais vantajosa do ponto de fiscal do que a integralização do mesmo bem ou direito pelo valor de mercado, nos termos do § 2º do art. 23 da Lei 9.249/95. Confira-se:
Art. 23. As pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado.
(…)
§ 2º Se a transferência não se fizer pelo valor constante da declaração de bens, a diferença a maior será tributável como ganho de capital.
Em suma, o legislador acabou criando uma regra que estimula a integralização pelo valor constante da declaração, geralmente incompatível e aquém do valor de mercado, ainda mais em se tratando de bem imóvel, muitas vezes adquirido há anos pelo proprietário e cuja valorização cresce exponencialmente após a sua inserção no perímetro urbano, de expansão urbana ou de urbanização específica.
Então, de um lado, por razões de economia tributária, o proprietário é conduzido a colocar o seu bem por um valor menor no negócio; e, de outro, para assegurar igualdade de participação societária com o empreendedor, é levado a integralizar o imóvel pelo valor de mercado e recolher o imposto de renda sobre o ganho de capital.
Ademais, pela dinâmica do negócio, certo é que o proprietário da gleba acaba integralizando todo a sua parte no capital social de uma só vez, pois isso se dá com a transferência do imóvel à SPE, enquanto o empreendedor não o faz no mesmo timing, justamente porque assume obrigações de trato contínuo e que muitas vezes não dependem exclusivamente da sua vontade, como a aprovação dos projetos perante os órgãos competentes, registro, execução das obras e investimentos para a comercialização dos lotes.
Essa realidade impõe certo risco ao proprietário, dado que num primeiro momento não teria garantias sobre o cumprimento das obrigações do empreendedor.
Como forma de mitigar esse risco, Luciano Mollica[3] sugere algumas formas, a saber: (i) fiança bancária da desenvolvedora, garantindo o aporte de todos os valores que deverão ser feitos na sociedade, embora os custos envolvidos na carta fiança sejam altos e esta hipótese seja restrita a um determinado perfil de empreendedor; (ii) majoração pari passu da participação societária, conforme se der a evolução dos aportes, considerando a estimativa do custo total do empreendimento; (iii) alienação fiduciária de quotas ou ações em garantia à efetiva execução dos investimentos.
Referido autor acrescenta, ainda, que muitas vezes tem que se trabalhar com o conceito de ágio na subscrição e integralização de quotas ou ações pela desenvolvedora, considerando que o dono da terra, até para não antecipar o pagamento de impostos em razão do ganho de capital, integraliza o terreno na SPE Loteadora pelo valor contábil, o qual muitas vezes é bastante inferior ao valor dos recursos necessários para o desenvolvimento integral do projeto (recursos esses que serão aportados pela desenvolvedora), razão pela qual o ágio será necessário para evitar a diluição na participação do dono da terra no capital social da SPE Loteadora, além do percentual ajustado entre as partes como a participação de cada qual no negócio[4].
Em conclusão, a SPE é um instrumento adequado para alocar riscos decorrentes da atividade de loteamento, sendo interessante tanto para o proprietário da gleba, que, em circunstâncias normais, não deve responder pelo passivo gerado pela sociedade, desde que essa não se enquadre nas hipóteses autorizadoras da desconsideração da personalidade jurídica, quanto para o empreendedor, que deverá criar mecanismos contratuais para evitar riscos que advindos do sócio.
Como em toda e qualquer formação composição societária, é importante às partes promoverem uma avaliação holística sobre a integridade do futuro sócio, seus empreendimentos antigos, eventuais problemas ambientais que tenham surgido em outros loteamentos, dentre outras situações que deverão ser analisadas circunstancialmente.
[1] Considera-se irregular o loteamento aprovado pelo município, porém não registrado perante o Registro de Imóveis da circunscrição competente, assim como também é irregular o loteamento aprovado e registrado, mas que não teve as obras de infraestrutura concluídas. Por seu turno, é clandestino o loteamento que nasce sem a aprovação do município, caso em que, a depender das circunstâncias e do atendimento a requisitos específicos, poderá ser objeto de regularização fundiária urbana, nos termos da Lei 13.465/17.
[2] A Lei 13.818/19 dispensa sociedades anônimas de capital fechado com menos de 20 acionistas e patrimônio líquido de até R$ 10 milhões da publicação de edital para convocação de assembleia geral, balanços e demais documentos exigidos da diretoria, resultando em simplificação considerável de sua estrutura e, por conseguinte, redução dos custos para o empreendedor.
[3] MOLLICA, Luciano. Aspectos Polêmicos do Contrato de Parceria para Desenvolvimento de Loteamentos. Operações Imobiliárias. Estruturação e Tributação, coordenado por Renato Vilela Faria e Leonardo Freitas de Moraes e Castro, Ed. Saraiva, 2016, p. 265.
[4] ob. cit. p. 265.