Fraude Contra Credores e Fraude à Execução
Raphael Augusto Almeida Prado
Tema que gera grande repercussão na prática imobiliária é a fraude contra credores, prevista nos arts. 158 a 165 do Código Civil, tratando-se de vício social presente quando o devedor insolvente ou que beira à insolvência realiza atos gratuitos ou onerosos com o intuito de prejudicar o interesse do credor.
Exemplos catedráticos da fraude contra credores são a venda ou a doação de bens imóveis pelo devedor insolvente, sendo anulável o negócio jurídico assim praticado (nulidade relativa).
Nota-se, portanto, que a solução para a fraude contra credores está no plano da (in)validade e não da (in)eficácia, sendo que o próprio art. 790, VI, CPC/15 sujeita à execução os bens cuja alienação ou gravação com ônus real tenha sido anulada em ação autônoma de fraude contra credores (ação pauliana).
O credor prejudicado pelo vício em questão deverá promover a competente ação anulatória do negócio jurídico, também denominada ação pauliana ou revocatória.
De acordo com o art. 161 do CC/02, a pauliana poderá ser proposta contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé, ficando protegidos os terceiros de boa-fé, ou seja, aqueles que ignoram a insolvência do devedor/alienante.
Embora o dispositivo em análise utilize o termo poderá, dando a entender tratar-se de litisconsórcio passivo facultativo, é pacífico o entendimento de que se trata de litisconsórcio passivo necessário, o que, inclusive, decorre da própria redação do art. 114 do Código de Processo Civil[1]. Confira-se:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PREENCHIMENTO DA GRU. ERRO DEDIGITAÇÃO. IRRELEVÂNCIA, NO CASO. PETIÇÃO RECURSAL. PREENCHIMENTODOS REQUISITOS LEGAIS. AÇÃO PAULIANA. TERCEIROS PREJUDICADOS.LITISCONSORTES PASSIVOS NECESSÁRIOS. AUSÊNCIA DE CITAÇÃO. NULIDADE DO PROCESSO(…). 4. – É obrigatória a citação dos terceiros adquirentes, na qualidade de litisconsortes necessários, na ação pauliana que visa a desconstituir a doação de imóvel realizada entre pais e filhos com fraude a credores, cuja sentença poderá afetar diretamente o negócio de compra e venda anteriormente celebrado. 5. – Agravo Regimental improvido. (STJ – AgRg nos EDcl no REsp: 1113776 SP 2009/0061702-1, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Data de Julgamento: 15/09/2011, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/09/2011) (grifei).
Os requisitos para a configuração da fraude contra credores, em se tratando de disposição onerosa de bens, (i) o elemento subjetivo, consubstanciado no conluio fraudulento entre alienante e adquirente (também chamado de colusão ou consilium fraudis); e (ii) o elemento objetivo, caracterizado pelo prejuízo ao credor (eventus damni).
Há presunção relativa (iuris tantum) de fraude nos contratos onerosos em que a insolvência do devedor for notória ou deveria ser conhecida pelo adquirente, nos termos do art. 159, CC.
Nas hipóteses de disposição gratuita de bens, como é o caso da doação, ou na remissão de dívidas, consistente no perdão daquela obrigação, basta que ocorra o evento danoso, não havendo necessidade de colusão para a caracterização da fraude.
O art. 163, CC/02 dispõe que se presumem fraudulentas as garantias reais ou pessoais (hipoteca, alienação fiduciária, fiança) de dívidas que o devedor insolvente tenha dado a algum credor. Neste caso, a presunção é absoluta, pois dar um bem em garantia não exige remuneração.
Quando o preço do imóvel ainda não tiver sido pago, poderá o adquirente depositar em juízo, mediante a citação de todos os interessados, nos termos do art. 160, CC/02, podendo se valer da consignação em pagamento para resguardar o seu direito.
Como a fraude é resolvida no plano da validade e não no da eficácia, como pretendia parte considerável da doutrina brasileira, uma vez anulado o negócio, o bem retornará ao patrimônio do devedor insolvente, aproveitando ao acervo sobre o qual tenha que se efetuar o concurso de credores, nos termos do art. 165, CC.
Logo, se houver credores preferenciais, aquele que desconstituiu o negócio fraudulento pelo manejo da ação pauliana não necessariamente terá o crédito satisfeito.
De modo a tutelar o patrimônio mínimo, tanto da pessoa física quanto da jurídica, o legislador estabeleceu que são presumidamente praticados de boa-fé os negócios indispensáveis à manutenção de estabelecimento mercantil, rural ou industrial, ou à subsistência do devedor e de sua família, conforme a redação do art. 164, CC/02.
Assim, os atos de administração ordinária, destinados à manutenção de uma determinada atividade ou até mesmo à dignidade da pessoa humana, não podem ser entendidos como fraudulentos, admitindo tal presunção prova em contrário.
A fraude contra credores não poderá ser arguida em embargos de terceiro, consoante a Súmula 195: em embargos de terceiro não se anula ato jurídico, por fraude contra credores. Portanto, imprescindível o manejo da ação pauliana.
O mesmo não ocorre nos casos de fraude à execução, admitindo-se sua apreciação em sede de embargos de terceiro, como já decidiu o próprio STJ.[2]
Aliás, é de suma importância comparar os institutos da fraude contra credores e da fraude à execução. O primeiro é próprio do Direito Civil, ao passo que o segundo é peculiar do Direito Processual Civil.
A fraude contra credores se caracteriza a partir da insolvência do devedor. Geralmente, a publicidade do negócio ou da própria insolvência é restrita, porquanto o devedor busca ocultar dos credores a sua situação financeira e a própria celebração do negócio fraudulento.
Por se tratar de questão de ordem privada, de gravidade menor do que a fraude à execução, que é matéria de ordem pública, a fraude contra credores é resolvida no campo da validade, como já vimos, ao passo que a fraude à execução é resolvida no plano da eficácia, sendo o negócio ineficaz contra os credores.
Justamente por se tratar de matéria de ordem pública é que a fraude à execução pode ser reconhecida de ofício e a qualquer tempo pelo magistrado, configurando-se ato atentatório contra a dignidade da Justiça, embora não seja comum tal reconhecimento.
Caracteriza-se a fraude à execução nas hipóteses do art. 797, CPC/15: I – quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver; II – quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828 ; III – quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude; IV – quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência; V – nos demais casos expressos em lei.
Note-se que a averbação na matrícula do imóvel é de suma importância para a caracterização da fraude à execução. Isso decorre do princípio da concentração dos atos no fólio real, com o objetivo de conferir publicidade ao ato.
Contudo, o inc. IV do dispositivo não estabeleceu o critério da averbação para os casos das demandas que podem reduzir o vendedor à insolvência, devendo o adquirente promover as pesquisas junto aos distribuidores.
Caberá ao adquirente, ainda, provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição do bem quando este não estiver sujeito a registro, como é o caso da aquisição de bens móveis, transmitidos por tradição, ou de bens imóveis irregulares, que não seriam registrados por alguma inconsistência própria do Direito Registral atinente, por exemplo, aos princípios da especialidade objetiva ou subjetiva, continuidade etc.
A prova se faz mediante a apresentação das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e da situação da coisa.
Conclui-se, então, que o adquirente de boa-fé deve não apenas observar se a matrícula do imóvel apresenta condições de segurança para a celebração do negócio, como também obter as certidões forenses e fiscais em nome do vendedor e de seus antecessores, por força do inc. IV e do § 2º do art. 792, CPC/15.
Por outro lado, a Lei 13.097/15, em seu art. 54, reforçou o princípio da concentração dos atos na matrícula ao estabelecer o seguinte:
Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:
I – registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;
II – averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil ;
III – averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e
IV – averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.
Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.(grifei)
A Lei 13.097/15 entrou em vigor um pouco antes do CPC/15. A leitura dos incisos I, II e III do art. 792 do CPC/15 se coaduna com o disposto na Lei 13.097/15, mas a controvérsia se inicia quando da leitura do inc. IV daquele dispositivo, que não faz menção à necessidade de averbação, fomentando a insegurança jurídica no tráfego imobiliário.
Afinal, bastaria observar a matrícula do imóvel ou seria também recomendável ao adquirente a obtenção das certidões forenses?
De acordo com a Súmula 375 do STJ, o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.
Embora existam julgados no TJSP que estejam alinhados ao entendimento acima exposto[3], há outras decisões que desconsideram a Súmula 375 ao adotar o argumento de que o registro lato sensu é irrelevante para a configuração da fraude à execução[4].
Em nosso entendimento, esse aparente conflito de normas deve ser resolvido pela interpretação harmônica e conjunta dos diplomas legais, de modo a garantir a segurança jurídica do terceiro de boa-fé, recomendando-se sempre a verificação da matrícula e das certidões forenses.
[1][1] Art. 114, CPC/15 – O litisconsórcio será necessário por disposição de lei ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes.
[2] AgREso 726.549/RS, j. 14.06.2005, Primeira Turma.
[3] EMBARGOS DE TERCEIRO. Penhora de imóvel dos Embargantes, pois transferido em fraude à execução. Inocorrência. Embargantes que, apesar da sua ciência inequívoca sobre a existência da execução embargada e de outras ações em face da alienante do imóvel à época da compra, provaram a sua solvência. Alienante proprietária de outros imóveis sem qualquer registro de indisponibilidade à época, cujo valor supera em muito os débitos cobrados judicialmente em face dela. Embargantes, ademais, que tomaram todas as cautelas necessárias quando da compra do bem, não havendo qualquer indício de prova de suposto consilium fraudis. Boa-fé caracterizada. Súmula nº 375 do STJ. Sentença reformada. Recurso provido. (TJ-SP – APL: 10665840420158260100 SP 1066584-04.2015.8.26.0100, Relator: Tasso Duarte de Melo, Data de Julgamento: 09/11/2016, 12ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/11/2016).
Embargos de Terceiro – Procedência- Inexistência de registro da penhora – Reconhecimento de fraude à execução que exige prova de má-fé do terceiro adquirente – Presunção de boa fé não afastada- Fraude à execução não configurada – Precedentes – Aplicação da súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça– Sucumbência mantida– Recurso desprovido. (TJ-SP – APL: 00465343420128260114 SP 0046534-34.2012.8.26.0114, Relator: Moreira Viegas, Data de Julgamento: 10/11/2016, 20ª Câmara Extraordinária de Direito Privado, Data de Publicação: 15/11/2016)
[4] FRAUDE À EXECUÇÃO. AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS EM FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. ALIENAÇÃO DE IMÓVEL A TERCEIRO APÓS A CITAÇÃO DA AGRAVADA EM AÇÃO CONDENATÓRIA. MM. JUÍZO QUE DEIXOU DE RECONHECER A FRAUDE À EXECUÇÃO POR NÃO HAVER REGISTRO DE CONSTRIÇÃO SOBRE O BEM, TAMPOUCO PROVA DE MÁ-FÉ DO ADQUIRENTE. FRAUDE À EXECUÇÃO QUE É PATENTE NOS AUTOS. AGRAVADA QUE ALIENOU O BEM A TERCEIRO APÓS CITADA PARA OS TERMOS DE AÇÃO CAPAZ DE REDUZI-LA À INSOLVÊNCIA, O QUE BASTA PARA A CONFIGURAÇÃO DA FRAUDE. IRRELEVÂNCIA DA APURAÇÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO DA CONDUTA. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 792, “CAPUT”, INCISO IV DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. DECISÃO REFORMADA. RECURSO PROVIDO. (TJ-SP – AI: 21027872020168260000 SP 2102787-20.2016.8.26.0000, Relator: Vito Guglielmi, Data de Julgamento: 27/10/2016, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/10/2016)
Agravo de instrumento. Execução de título judicial. Fraude à execução. Inteligência do art. 792, IV do Código de Processo Civil. Demonstração dos requisitos necessários para a caracterização da fraude à execução, quais sejam: a existência de ação contra o executado e o estado de insolvência decorrente da doação realizada, o qual se presume, ante a frustração dos meios executórios na ação em curso. Estado de insolvência que também não restou afastado pelo agravante. Fraude à execução bem reconhecida. Declaração de ineficácia da doação do bem imóvel que fica mantida. Recurso improvido. (TJ-SP – AI: 21618350720168260000 SP 2161835-07.2016.8.26.0000, Relator: Ruy Coppola, Data de Julgamento: 17/11/2016, 32ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/11/2016)